Sozinho. Era assim que ele
estava e é assim que ele sempre foi. Trancada minúsculo armário escuro e
abafado não tinha mais nada a fazer além de pensar.
Abnegação. Audácia. Erudição. Franqueza. Amizade.
Era o dia anterior ao dia da
escolha e seu pai queria que ele fizesse a escolha certa e essa era Abnegação,
a facção dos que se doavam sem pensar em si mesmos, uma ideia nobre se não
fosse tão extremista: roupas simples e cinzas para todos, cabelos cortados sem
ousadia, casa sem adornos e apenas um espelho que deveria ficar coberto, comida
sem cor ou sabor, mas o pior para ele era não poder falar o que sentia, algo
considerado egoísta por sua facção e que criava um abismo entre ele e o resto
do mundo.
Solidão.
Medo.
A marca do cinto de seu pau
ardia em seu punho, mas já teria sumido pela manhã na hora da cerimônia. Queria
que a sua mãe estivesse viva, apesar de obedecer aos ideais da Abnegação, a sua
presença trazia alegria e deixava seu pai menos agressivo. Ele sabia o que
deveria fazer, o que era certo e pensando nisso finalmente tomou uma decisão.
Foi acordado pelo pai cedo que
batia na porta do armário e depois o destrancou. Arrumou-se na medida do
possível, comeu qualquer coisa e saiu de casa caminhando de cabeça baixa
enquanto se juntava a massa cinza que ia para o prédio do Eixo. Sua facção foi
a última a chegar à sala de cerimônia porque deixaram as outras facções usarem
os elevadores primeiro.
Seu pai, como grande líder que
era, tomou a palavra na frente de todos fazendo o mesmo discurso que ele tanto
o ouvia praticar. Um por um os jovens de dezesseis anos foram chamados para
fazer um corte na mão e derramar seu sangue na esfera de vidro correspondente a
sua escolha. Não demorou para que ele fosse chamado. Andou confiante e a cada
passo que dava inflava se peito e levantava mais a cabeça. Pegou a faca da mão
do pai que lhe lançou um olhar significativo. Cortou a própria mão, tinha
tomado sua decisão, mas não era a certa.
Seu sangue pingou nas brasas da Audácia.
Ele era corajoso, tanto que
olhou fixo para o pai que estava em choque enquanto se encaminhava para o seu
novo lugar, sua nova família.
Estava no trem, logo após a
cerimônia teve que seguir a sua nova facção correndo e pular no trem em movimento,
dois garotos ficaram para trás e se tornariam sem-facções, ele ajudou um outro
garoto a subir, um transferido como ele vindo da Erudição. Pensou no que fez,
no ódio que se derramava dos olhos azul-escuro do pai, como uma tempestade no
mar. Sorriu. Não tinha muitos medos, só conseguiu se lembrar de dois: de ser
confinado e de seu pai. Teria continuado nesse pensamento se o trem não tivesse
desacelerado um pouco e os outros começado a levantar, não demorou para que
pulassem e logo também foi sua vez, não teve problemas com o salto mas teve que
ajudar aquele mesmo garoto da Erudição que havia ficado pendurado na beira do
telhado. Sim, eles tinham ido parado em no telhado de um prédio de sete andares
em uma região da cidade em que ele nunca tinha estado antes. Os iniciantes se
amontoaram em um grupo oposto ao dos mais velhos que o esperavam, dentre eles
se sobressaltou Max, um líder da Audácia que ele conhecia de vista por
intermédio do pai, ele explicou o que tinham que fazer: pular para o abismo
negro que se encontrava do outro lado do prédio. O grupo de iniciados recuou um
passo e apenas um tomou a frente: o garoto da Erudição, o primeiro a pular, os
outros foram aos poucos, alguns fechavam os olhos, uns caiam como pedras,
outros gritavam e esperneavam, mas todos os saltos terminavam da mesma maneira:
em um silêncio completo e total.
Foi então que descobriu o seu
terceiro medo. Medo de altura, ele mal pisou na beirada do prédio e começou a
tremer, se concentrou, respirou fundo, e conseguiu pedir alto o suficiente para
que alguém simplesmente o empurrasse, devem tê-lo interpretado da maneira
errada, mas funcionou, rindo eles o empurraram com força e ele despencou no
abismo...direto para uma rede de segurança cercada de membros da Audácia que o
recepcionaram com urros de alegria.
O treino era árduo e seu
treinador nada amistoso. Foi em dos dias da primeira fase que descobriu o seu
quarto medo. Eric, o garoto da Erudição, arrumou briga com os iniciados
nascidos na Audácia e a represália foi cruel: o penduraram no fosso de cabeça
para baixo preso somente pelo próprio pé esquerdo, ele aguentou bem pelo tempo
estipulado, mas na hora que tentou voltar uma de suas mãos escorregou e quando
estava para cair, ele, o garoto da Abnegação, se adiantou e o segurou para que
pudesse subir em segurança. O treinador ficou furioso e os arrastou para a sala
de tiro onde colocou Eric de costas para o alvo, sua cabeça batia na altura do
meio do círculo central onde ele deveria de acertar, sua mão tremia ao segurar
a arma e olhar para Eric sem qualquer tipo de proteção e com os olhos cheios de
medo, mas firme em sua posição. Mirou e atirou. O furo da bala no alvo tinha
respingos de sangue, Eric gritou e caiu no chão, o tiro passou de raspão
deixando uma marca rasa na cabeça dele que sangrava muito. Nunca sentiu tanta
culpa e desespero por causa de outra pessoa.
Depois de muito tempo treinando ele finalmente entendeu o
que significava ser da Audácia. Ele deveria sentir medo e ser corajoso e
audacioso o suficiente não para superá-lo, mas sim para enfrentá-lo todos os
dias. E isso ele era, por isso era Tobias o garoto dos Quatro medos.
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